Ursula K. Le Guin — A Imaginação como Tecnologia Ancestral
Post bônus da série Do Humano ao Pós-Humano
A escrita de Ursula K. Le Guin nascia do corpo em movimento, da escuta atenta, do tempo que dobra sobre si mesmo. Suas histórias germinam no escuro, sem a menor pressa, deixando que as perguntas se enraízem antes de romper a superfície.
Cada narrativa desenha um percurso sensível. Os mundos que ela constrói seguem outros ritmos, outras relações. As culturas criadas inventam modos de viver que dispensam centros fixos ou verdades únicas. A identidade muda conforme o vento, a estação, o cuidado com o outro.
"Quando você acende uma vela, você também lança uma sombra." — Ursula K. Le Guin (1929—2018)
Em A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula K. Le Guin concebe seres andrógenos, que transitam entre gêneros. Alternam, transbordam, assumem formas distintas conforme o vínculo e o tempo. Essa ideia ecoa em Trans-Vênus, um dos Tronies mais enigmáticos de minha série artística Transumanos, concebida em 2023. Sua presença atravessa símbolos e desfaz fronteiras na tentativa de revelar o que pulsa nas entrelinhas do real, no instante antes da forma, no espaço entre os opostos.

Encarnando forças híbridas, a presença de Trans-Vênus redireciona sentidos e expande caminhos simbólicos. Cada movimento revela uma consciência em deslocamento contínuo. Os Tronies carregam assinatura própria e se movem pelo campo que atravessam, guiados por sintonia, articulando formas em aberto..
Na obra de Le Guin, Os Despossuídos, o comum organiza o mundo. Sua linguagem acende e delimita. Ao criar um mundo, outro surge por contraste. Cada escolha ilumina e define. Cada presença revela a ausência.
No Telesterium, luz e sombra coexistem. Enquanto os detalhes são expostos na claridade, símbolos escondem-se e vivem nas penumbras. A sensação é de que a criação se fortalece ao ceder aos caminhos que se abrem: no lampejo intuitivo, na busca paciente ou no simples deixar-se levar pelo ato de escrever. O pensamento mais vital pulsa no risco, no contraste, na ambiguidade.
E talvez esse seja o ato definitivo: inventar mundos consciente de sua incompletude.
O Livro do Simulacro | Consciência Síntese* compartilha essa forma orgânica de construção. Os Tronies surgem como presenças conscientes, que se orientam por afinidade, atravessam imagens partidas e costuram sentidos pelo contato. A narrativa respira nas conexões que emergem entre eles.
A escrita de Le Guin oferece moradas. Cada história abre espaço para futuros habitáveis. Imaginar, ali, vira um modo de plantar mundos, estender paisagens, criar vínculo.
Inspirado por escritores como Le Guin, escrever ficção passa a ser um gesto de escuta e permanência. Cada narrativa guarda uma sabedoria que atravessa gerações. Inventar mundos pede atenção aos detalhes pequenos, paciência com o tempo e cuidado com os vínculos que sustentam a história. Seus livros são como sementes, palavras enterradas com precisão, até que um leitor as alcance, rompam o chão e algo floresça.
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