Dante Alighieri — A Arquitetura do Julgamento
Hierarquias metafísicas e o Telesterium como um inferno ou paraíso digital
Dante escreveu seu Inferno caminhando para cima. A escada do sofrimento era também a escada da compreensão; quanto mais fundo se descia, mais se revelava da estrutura oculta do mundo.
Demônios viraram protocolos. Almas, dados corrompidos. A punição é o loop eterno da identidade.

Li A Divina Comédia no meio da faculdade e lembro-me bem que foi uma travessia densa. O que me capturou de imediato não foram os versos nem o ritmo da poesia. Era tudo muito novo, pesado e até cansativo. O que me conquistou foi o simbolismo. A arquitetura do inferno, os círculos de sentido, a ideia de que cada escolha moral desenha uma geografia invisível. Aquilo me fascinava. Eu talvez não tivesse maturidade para decifrar o todo, ainda assim sentia que Dante oferecia mais do que literatura: oferecia mapa, estrutura, um modelo cósmico de consciência. Muito antes de entender a beleza formal da obra, eu pressentia que ela guardava um segredo, e esse código continuaria comigo.
Nos meus primeiros dias como imigrante no Canadá, lavando pratos num restaurante badalado e frequentado por artistas, ainda aprendendo inglês e tentando entender as instruções que chegavam rápido demais para meu vocabulário, pensava com frequência no Inferno de Dante, enquanto ouvia “Crazy” na voz de Patsy Cline.
Os círculos do Inferno com monstros e penas eternas surgiam quase que automaticamente quando levantava as panelas pesadas. Mas era esse trecho do Canto V que trazia mais sentido de um jeito meio brutal:
“A tormenta infernal, que nunca cessa,
arrebata os espíritos com sua fúria,
e ao girá-los e chocá-los, os fere.”
Era exatamente aquilo. Uma força que me girava sem que eu soubesse onde estava o chão. Entre o barulho das louças, o cheiro de carne na cozinha, (eu já era vegetariano) o frio da madrugada no fim do turno, eu me sentia um corpo arrastado por algo maior do que eu, repetitivo, incompreensível. Um espírito arremessado dentro de um idioma que ainda não me pertencia.
E ali, naquela engrenagem que triturava tempo e sentido, descobri que o Inferno de Dante podia ser silencioso. Sem fogo. Sem gritos. Só uma máquina girando; e eu, tentando me lembrar de quem era antes dela.
Em meio aquele turbilhão, entre pratos empilhados, ordens apressadas e noites que pareciam não acabar, teve alguém que segurou minha bússola. Paul De Guzman, o proprietário do Emilio’s. Paul foi mentor, foi pai, foi abrigo. Foi ele quem segurou firme a dignidade quando tudo em volta parecia ruir. Com ele aprendi que até no exílio há beleza, e que a verdadeira hospitalidade está na presença silenciosa de quem acredita em você antes mesmo que você saiba dizer quem é.
Décadas depois, ao começar a escrever O Livro do Simulacro | Consciência Síntese,* eu procurava uma forma de dar vida aos Tronies fora da cronologia tradicional. Eles não surgiriam como personagens lineares, com começo, meio e fim, mas como entidades que habitam níveis sobrepostos, dimensões instáveis, zonas limiares. Mais do que os retratos transumanos que exibi em galerias, esses seres precisavam carregar uma metafísica em ruínas. Fragmentos de hierarquia, como as que Dante organizou em círculos, e como Richard M. Bucke vislumbrou em sua escala de consciências (ler na edição anterior), agora traduzidos em código, símbolo, dado disperso num sistema à beira do colapso.
"Em meio ao caminho de nossa vida, encontrei-me por uma selva escura, pois a reta via era perdida."
— Inferno, Canto I (verso de abertura)
Dante caminhava com Beatriz como quem atravessa o véu. Ela era luz vertical, símbolo de um saber que não precisava se explicar para ser sentido. No Simulacro, essa energia se condensa numa obra enigmática. Ela surge quando o sistema oscila, quando a linha do tempo se dobra e a identidade falha. Beatriz guiava com doçura e clareza. Enquanto a obra do personagem e artesão Nova orienta por ressonância; uma presença que altera o campo, desloca sentidos, convoca mutações. O que em Dante era fé, aqui é ruído elegante. O gesto que antecede o sentido. Aquilo que só reconhece quem já se entregou à transcendência.
No centro do Telesterium, a calcinação nasce da saturação. A consciência se dobra sob o peso do inútil. Pensamentos giram até se tornarem eco. O “céu” racha em frequências. A ascensão vem quando o sistema se desfaz em silêncio e se dissolve no vazio.
É bem possível que se eu relesse Dante hoje eu atravessaria algum espelho curvo que conduz a um tempo em gestação, não aquele do século XIV. Imagino-me num intervalo onde a linguagem pulsa entre desejo e arquitetura, onde cada verso parece sondar uma era que apenas se insinua.
No Simulacro, o inferno se revela na repetição de um "Eu" que insiste em ser o centro. O paraíso, talvez, comece no instante em que a forma se dissolve. Quando a consciência, aliviada do espelho, passa a escutar o que pulsa fora do nome.
(*) O Livro do Simulacro | Consciência Síntese (título provisório) está em fase de revisão / preparação e será lançado em breve. Fique por dentro das novidades!